segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Os melhores filmes de 2008

Magnífico o ano cinematográfico de 2008. Ao menos para nós, brasileiros: logo no início do ano já fomos agraciados com a excelente safra do Oscar, e a qualidade continuou alta ao longo de 2008. Para um fã de filmes de terror como eu, foram 12 meses históricos: provavelmente nunca vi tanto filme de terror bom no cinema em um ano só.

Foi difícil escolher 20 filmes. Mesmo não aparecendo na lista, algumas obras merecem menções e valem muito a pena: o brasileiro Estômago, provavelmente o filme nacional mais surpreendente do ano; o delicado e silencioso A banda, uma maravilha vinda do Egito; O silêncio de Lorna, que pra mim só prova que os irmãos Dardenne melhoram cada vez mais; e Senhores do crime, que prova porcaria nenhuma, já que dizer que "David Cronenberg é mestre" é chover no molhado.

Enfim, vamos aos escolhidos.



20 >> Shortbus
John Cameron Mitchell pode ter demorado cinco anos para realizar o sucessor de Hedwig and the Angry Inch, mas pode-se dizer que a criatividade do diretor continua intacta após todo esse tempo. Só nos primeiros minutos de filmes temos uma fabulosa maquete de Nova Iorque, um casal que transa em mil posições diferentes e um cara praticando auto-felação. Mainstream não é!
Shortbus costuma ser descrito como um filme onde vários nova-iorquinos pós-11 de setembro tentam se aproximar usando o sexo como forma de comunicação, ou algo similar. Pode ser visto assim. O filme chamou muita atenção pelas cenas de sexo explícito; elas estão lá, às vezes hilárias, outras vezes excitantes. Mas o que mais surpreende (e toca) em Shortbus é a profundidade dos personagens, é a tristeza que cada um sente apesar da aparente felicidade, dos aparentes orgasmos, da aparente realização pessoal. E o clube Shortbus, onde todos se encontram, representa uma utopia pessoal minha - e imagino que de muita gente: um lugar onde o clichê "tudo é permitido" não representa uma loucura animal e insana, mas sim um lugar de paz, onde as pessoas se gostam, se desejam e se importam com as outras - tudo junto.

19 >> Longe Dela (Away From Her)
Filmes sobre velhos (nada de "melhor idade" e outros termos politicamente corretos aqui; continuo achando que envelhecer é uma tristeza) têm um grande potencial para serem (melo)dramáticos. Filmes sobre velhos com Alzheimer, então, podem se tornar um grande banhão de lágrimas. Não que isso seja um demérito - basta ver o ótimo Diário de uma Paixão. Mas quando alguém consegue fazer um filme sobre o tema e não cair nos caminhos fáceis do drama, é algo a se celebrar. Se esse alguém é uma diretora estreante, então, parabéns quadruplicados. Foi o que Sarah Polley, ótima atriz de filmes como Minha Vida Sem Mim e Madrugada dos Mortos conseguiu com Longe Dela. Ela pega um tema difícil e dá uma aula de dignidade, elegância e ternura. As atuações de Julie Christie e Gordon Pinsent (ela, indicada ao Oscar e incensada; ele não fica atrás, talvez na atuação mais difícil do filme) dão à história um ar adulto totalmente diferente de outros filmes do gênero. Nada de cenas que arrancam lágrimas do espectador. Quando isso acontece, é nos momentos mais singelos (como quando o nome do filme é pronunciado). A conclusão em "aberto" - há controvérsias - só enriquece ainda mais esse filme, feito por e para adultos.

18 >> Pelos Meus Olhos (Te Doy Mis Ojos)
Eis outro tema bastante explorado em um monte de filmes, muitos deles bem ruins: a violência doméstica. Assunto delicado, com tudo pra descambar no dramalhão e na vingança involuntariamente engraçada à la Jennifer Lopez em Nunca Mais. Não é o caso desse espanhol Pelos Meus Olhos. Desde as primeiras cenas, que mostram a fuga da assustada Pilar (Laia Marull), o filme segue tenso, o tempo todo, mesmo que as cenas de violência - que são pouquíssimas - escapem do clichê de "Nossa, eu não previ isso". Boa parte da tensão se deve à excelente atuação de Luis Tosar, que se recusa a transformar seu Antonio em um vilãozão bidimensional. Mas o filme é mesmo de Marull, que passa toda a fragilidade de uma mulher que não sabe muito bem como retomar a vida após uma experiência tão traumatizante. Não estamos diante de uma "volta por cima", mais comum no cinema do que na vida real; aqui, a mulher ainda tem a esperança de reconstruir o casamento. Ver as tentativas de Pilar irem por água abaixo é devastador - uma cena em particular, na sala do lar do casal, é destruidora porque atinge muito mais o psicológico do que o físico de Pilar. Não tem problema algum no fato de o filme ser de 2003; o importante é que o público brasileiro (ou belorizontino) finalmente teve a chance de assistir esse grande filme.

17 >> Encarnação do Demônio
José Mojica Marins é o diretor mais original da história do cinema brasileiro. Quem mais conseguiu sobreviver fazendo filmes de terror no Brasil? Quem mais teve que esperar quarenta anos para conseguir finalizar uma trilogia? Pois quando Encarnação do Demônio finalmente foi lançado, o público simplesmente o ignorou. Fico triste por Mojica, mas fico feliz ao pensar em que o diretor não perdeu nada do seu talento durante esse tempo. Encarnação do Demônio é sensacional, cheio de frases de efeito e cenas inesquecíveis, a começar pela brilhante entrada de Zé do Caixão em cena, com suas unhas inconfundíveis. Se a imagem que a maioria dos brasileiros têm de Mojica é uma figura quase cômica, com sua cartola e capa pretas, o cineasta Mojica é barra-pesada, visceral, que encena as torturas de Zé do Caixão de forma artesanal e barroca, sem efeitos especiais. Quem viu o filme não esquece a tortura com um rato, ou o porco de onde sai uma mulher nua. Mas para o deleite dos fãs, Mojica continua divertido, com seu sotaque e seu poder de atração que desafia qualquer galã de Hollywood ("Matei suas tias; o que você vai fazer?", ele diz a uma mulher. "Serei sua" é a resposta!). Mal posso esperar para ter o DVD dessa preciosidade: esse é o tipo de filme que eu vou adorar ficar revendo pra decorar todas as falas e citá-las sempre que possível.

16 >> O Orfanato (El Orfanato)
Nem dá pra pegar a saída mais fácil e dizer que "a Espanha ensina aos EUA como fazer um filme de terror", já que a terra de Obama também produziu alguns filmes fenomenais do gênero neste ano. Mas O Orfanato é nitidamente europeu, com economia de sangue e sustos fáceis - mas quando eles surgem, olha o cinema inteiro pulando junto! O clima aqui é o mais aterrador, com a grande casa vazia onde um dia funcionou o orfanato do título; um garotinho com uma máscara aterradora, um verdadeiro Homem Elefante júnior; e até mesmo uma brincadeira similar ao pique-esconde, uma das cenas mais bem-filmadas e tensas do ano. Geraldine Chaplin aparece como uma médium em uma sequência aterrorizante, com a casa toda escura; mas o destaque é mesmo Belén Rueda, que usou sua experiência pessoal (ela perdeu uma filha, vítima de problemas no coração) para construir uma atuação que não é só tensa, mas também emocionante - lembrando Nicole Kidman em Os Outros. E a solução do mistério é tão bem encaixada, tão ajustada que dá gosto de repensar todas as pistas que o filme vai dando no decorrer da história. Aliás, um filme de terror tão bom assim é pra ver mais de uma vez.

15 >> Cloverfield: Monstro (Cloverfield)
Até que demorou para alguém fazer um filhote à altura de A bruxa de Blair, mas 2008 trouxe dois deles para os cinemas brasileiros (o outro também está nesta lista). Cloverfield foi precedido de toda uma campanha misteriosa, o que fez as expectativas subirem ao teto. Sorte nossa que o resultado final corresponde à apreensão deixada pelo trailer e por aquele cartaz da Estátua da Liberdade sem cabeça: é um filme curto e jovem, mas que não segue os caminhos mais óbvios. Desde o início, é possível ver um cuidado do roteiro em fazer com que o público se importe com os personagens, principalmente com o casal central. Quando o monstro começa o ataque a NY e a turma decide ficar em Manhattan para buscar o objeto de desejo do protagonista, a decisão parece lógica e não absurda. E sai de baixo com a tensão provocada pelo monstrão: visto de início só de relance, cada detalhe apresentado - pernas, rabo, a própria dimensão do belzebu - provoca espanto. E as "surpresas" que o monstro carrega consigo são fenomenais, criando ótimas cenas em uma linha de metrô e também num hospital de campanha. Mas o maior diferencial do filme é mesmo o emocional: ao final de tudo - final esse que não é feliz -, quando uma personagem, em uma fita gravada anteriormente, diz a singela frase "Eu tive um dia bom", dá pra sentir toda a tristeza e dor por aquelas vidas encerradas de modo tão absurdo. E se meus elogios parecem exagero, saibam que a publicação mega-intelectual Cahiers du Cinéma também colocou o filme entre os melhores do ano, OK?

14 >> Estamos Bem Mesmo Sem Você (Anche Libero Va Bene)
Os atrasos que alguns filmes europeus sofrem para chegar ao Brasil (mais especificamente, a Belo Horizonte) se acumularam em 2008. Como resultado, uma leva de obras de alguns anos atrás chegou aos cinemas da cidade somente no ano passado. Para minha sorte, várias delas são verdadeiras obras-primas, como este filme italiano de 2006. O ator-que-virou-diretor Kim Rossi Stuart (de As chaves de casa) estréia na direção com uma história cruel sobre um garoto que, sem querer, se torna o pára-raios de uma família em dissolução. Bonito e bom ator, não dá pra acusar Kim Rossi de vaidade, já que ele, além de dirigir, interpreta o pai - que é francamente antipático e odioso. Após a partida da mãe, o pequeno Tommi, de 11 anos, é obrigado a lidar com todo tipo de displicência e obrigações que seu pai impõe; quando a mãe volta, implorando por perdão, aquilo pode significar finalmente a merecida paz da criança. Como estamos diante de um drama, infelizmente não é isso que ocorre. O pequeno Alessandro Morace tem uma atuação assombrosamente madura, passando longe das caras e bocas que seduziriam fácil os espectadores. Choro fácil, então, nem pensar. Tanto que, na última cena, quando o sofrido Tommi finalmente cai em prantos, o efeito é arrasador, mais forte do que cinco melodramas juntos. A gente tem a esperança de que Tommi vá ficar bem, mas a realidade não aponta para isso...

13 >> Os Estranhos (The Strangers)
Que vontade de levantar e aplaudir esse filme ao fim da sessão! Isso se eu estivesse em condições, já que, quando os créditos subiram, eu estava tremendo, nervoso e chorando. Eis aqui a melhor homenagem aos filmes de suspense e terror dos anos 70, tipo The Last House on The Left de Wes Craven, aquele tipo de filme com recursos mínimos e uma premissa tão simples (casal em casa isolada é aterrorizado por estranhos) que foi praticamente destruída por inúmeros filmes ruins. Mas aqui temos um diretor, Bryan Bertino, que nitidamente ama filmes de terror, e tem um respeito profundo pelo espectador. Basta analisar a famosa cena da foto ao lado (que também ilustra o pôster original): quando o mascarado aparece ao fundo da cena, e Liv Tyler não o vê, um diretor mais escroto faria com que ele sumisse... pra logo depois dar um susto no espectador pulando em frente à cena. Mas o diretor simplesmente deixa ele no fundo, desfocado, e o efeito é incrível, tenso, angustiante: ELE CONTINUA LÁ! É tudo que um fã de suspense pode pedir, assim como as belas e discretas homenagens a clássicos como O iluminado, Pânico e O Massacre da Serra Elétrica. Claro que o filme tem a sua cota de sustos fáceis, mas pelo amor de Deus, quem no cinema não deu um pulo de vinte metros quando o rosto do mascarado aparece na janela? Na verdade o maior mérito do filme é o incrível sadismo dos "estranhos": eles não se contentam em assustar suas vítimas por 15 minutos e depois matá-las; eles vão assustá-las (e o espectador também) durante o filme inteiro. Isso, pra mim, é genialidade.

12 >> Wall-E
O que mais pode ser dito sobre Wall-E que ainda não foi dito? Não, não é o melhor filme da Pixar (ainda prefiro Ratatouille). Mas até isso pode mudar no futuro, já que este é com certeza o filme mais adulto e ousado da Pixar. É chover no molhado falar dos primeiros 40 minutos de filme, como eles ocorrem quase sem diálogo algum. Mas tem como não ficar maravilhado com aquilo? Com a baratinha que acompanha Wall-E e é sem dúvida a Barata Mais Fofa da História? E as gags visuais brilhantes, como a dúvida entre o anel e a caixa que o comporta? Isso sem falar nas cenas em que o nosso herói assiste comovido ao musical Alô, Dolly!. Talvez isso seja o mais próximo que o cinema americano chegou da obra de Hayao Miyazaki: aquele tipo de filme em que a única reação possível é ficar de boca aberta e pensar incessantemente: "Não acabe, não acabe, que esse mundo mágico não acabe". Talvez o filme caia um pouco depois que Wall-E e sua amada Eva partam para uma aventura interplanetária; ou então o filme passe a proporcionar prazeres mais convencionais, mas não menos adoráveis. O fato é que Wall-E já entrou, merecidamente, pra história do cinema. Eu é que não queria estar no time do "não gostei", pois eles estão perdendo de goleada.

11 >> Na Natureza Selvagem (Into the Wild)
Quando eu era criança, vi um filme na Sessão da Tarde chamado Minha Montanha Mágica - sobre um menino que vai para as montanhas e fica vivendo lá, com a ajuda de um ermitão ou algo parecido. Eu adorei o filme, e essa idéia de morar sozinho no meio da natureza. Mas hoje em dia, um filme sobre isso, para as pessoas em geral, parece simplesmente um Minha Montanha Mágica - um filme para crianças. Conheço várias pessoas que não viram Na Natureza Selvagem porque acharam que a história era boba: um cara que decide largar tudo e todos e morar sozinho na natureza. Bobos eles, já que o filme - e a premissa dele também - é sobre a vida, sobre solidão, sobre a importância dos outros seres humanos à nossa volta. A história (real) de Chris McCandless ressoa para qualquer pessoa que já tenha pensado nesses temas. E quem já não pensou? Quem já não teve a idéia de que abandonar a humanidade pode ser o melhor passo? O diretor Sean Penn, sabiamente, primeiro mostra o ponto de vista de Chris: as vantagens de estar sozinho, a liberdade, a ausência de regras, a beleza indescritível da natureza. Mas aos poucos, Penn vai mostrando o outro lado: as coisas que só conseguimos quando convivemos com outras pessoas, a maravilha que é descobrir partes de si nos outros, ver que alguém que encontramos pela vida pode pensar como a gente. E quando Chris aprende a grande lição da sua vida, ela é compartilhada por todos: a felicidade só é real quando compartilhada. Esta é a obra de um verdadeiro humanista. Alguém que, apesar dos pesares, acredita nos humanos.

10 >> [REC]
E aqui está o outro filhote brilhante de A bruxa de Blair. Assim como Cloverfield, [REC] é todo filmado em câmera subjetiva - com as consequências naturais, como um ponto de vista "balançante", imagem "lavada" etc. E [REC] é mais uma prova de que um bom filme de terror não precisa de muita coisa além disso. Todo filmado em um só ambiente, com poucos atores, temos aqui uma das experiências mais assustadoras dos últimos tempos. Não estamos diante de uma premissa muito original - um prédio onde os moradores começam a manifestar sintomas de uma estranha doença -, mas temos talento puro e bruto por trás das câmeras. O que é mais surpreendente é que, mesmo num filme que dura só 80 minutos, os diretores Paco Plaza e Jaume Balagueró ainda tomam todo o tempo do mundo pra introduzir os personagens: a repórter, o câmera, os bombeiros que vão investigar uma chamada misteriosa num prédio. Tempo suficiente para que eu pudesse pensar, "O filme está ok, mas eu não estou sentindo medo algum". Ah, se eu soubesse! A partir do momento em que as consequências da doença são mostradas, o filme é um trem-fantasma com a velocidade de uma montanha-russa, mas sem as ondulações dessa última. É uma porrada, com sangue em quantidade suficiente para assustar, cenas aceleradas, sustos certeiros e um clímax que... Lembram do clímax de A bruxa de Blair, na casa no meio do mato? O clímax de [REC] é naquele nível. É assustador. É ABSURDAMENTE ASSUSTADOR. É de virar do avesso. São cinco ou dez minutos de terror puro, daqueles de querer esconder a cara, de querer sair do cinema mas sem conseguir desgrudar os olhos da tela. Se a famosa "visão noturna" parecia ter atingido seu ápice no cinema no final de O Silêncio dos Inocentes, o final de [REC] acaba de elevar esse recurso a outro patamar.

09 >> Vicky Cristina Barcelona
Quantas vezes eu ouvi a frase "Esse é o melhor dos últimos filmes do Woody Allen"? Inúmeras. Após o superestimado Match Point, a frase se multiplicou. Eu nem sou um grande detrator dos filmes que Woody fez nessa década, acho a maioria no mínimo decente. Mas faltava uma obra-prima. Faltava. Barcelona conseguiu o que Londres apenas tentou: fez o talento do diretor ressurgir aos borbotões, jorrar do nova-iorquino. Vicky Cristina Barcelona é um dos melhores filmes dele, porque tem tudo que ele sabe fazer de melhor: atuações esplêndidas, frases certeiras que parecem sair de forma natural da boca dos atores, um falso sentimento de leveza e alegria (o gosto amargo no final do filme é o mesmo de obras como A Rosa Púrpura do Cairo e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa). Li tanta gente chamando esse filme de "leve" que me perguntei se eles teriam visto o mesmo filme que eu. Sim, a atmosfera é leve e agradável como o verão em Barcelona; mas os temas são fortes, existenciais. Temos duas mulheres, uma que acha que sabe o que quer e outra que sabe somente o que não quer; temos um homem que vai bagunçar o coração das duas; temos uma terceira mulher que vai bagunçar tudo. No meio do caminho, algumas verdades dolorosas vão sendo ditas ("Apenas tenho que aceitar que eu não tenho talento algum", diz a Cristina de Scarlett Johansson, num dos momentos mais tristes do ano cinematográfico para mim) e outras verdades são descobertas. E as respostas definitivas, aquelas que vão dar rumo à vida? Essas não existem, e Woody Allen sabe disso. A única opção é seguir, sabendo o que se quer... ou sabendo o que não se quer.

08 >> O Nevoeiro (The Mist)
É bom ver O Nevoeiro sabendo de pouca coisa, assim como eu fui ver. Torna as surpresas mais chocantes, e o roteiro ainda mais esperto. Se você sabe que o filme é sobre um nevoeiro misterioso que toma conta de uma cidade, ótimo; deixe-se surpreender com os rumos que a história toma. Se você sabe mais, surpreenda-se com o que o filme vai te fazer pensar: o poder absurdo de Deus e da Bíblia nas mãos de uma pessoa desequilibrada (e nem estamos falando de guerra); os atos desesperados e egoístas que a paranóia pode levar alguém a cometer; como o "ama seu vizinho" é muito mais fácil na teoria do que na prática. O diretor Frank Darabont pegou o conto de Stephen King e fez um autêntico filme B (ele inclusive queria que tudo fosse em preto-e-branco), mas um filme B com talento A. Uma Marcia Gay Harden irrepreensível interpreta uma beata insana e perigosa; dá pra ver o Diabo agindo por ela disfarçado de Deus. Cenas de conflito entre pessoas que pensam de forma diferente são tão tensas quanto ataques de um inimigo desconhecido e nada humano. E o final. Que final. Que ousadia, que soco na cara de todos os anos e décadas de finais redentores, felizes, esperançosos. É final pra entrar em qualquer lista de finais-mais-desesperançosos-do-cinema, final pra ser analisado e admirado no futuro - "Putz, que ousadia desse diretor". Claro que o filme foi fracasso de bilheteria nos EUA. Dava pra esperar algo diferente de um filme tão corajoso?

07 >> Batman - O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight)
2008 foi o ano do morcego, não há como negar. Mesmo para aqueles que, como eu, não morreram de amores por Batman Begins, foi impossível resistir a todo o talento por trás de O Cavaleiro das Trevas. Deixa eu falar do Heath Ledger de uma vez, porque não tem como não falar dele: a cena do "desaparecimento do lápis" é ou não é uma das mais legais do ano? E o Coringa vestido de enfermeira, o que é aquilo? Vou ficar só nisso, porque, depois que a fumaça toda se dissipa, é mesmo muito triste pensar que não teremos mais uma interpretação de Ledger para ficarmos maravilhados (e pode apostar que sim, vou derramar umas lágrimas quando ele ganhar o Oscar). Mas o resto do elenco do filme responde à altura. Christian Bale maneirou na rouquidão do Batman e está mais à vontade; Morgan Freeman, Gary Oldman e Michael Caine são os coadjuvantes mais elegantes e luxuosos que um filme de super-herói poderia pedir; Aaron Eckhart é o altruísmo em pessoa na pele de Harvey Dent (até... bom, quem viu sabe); e Maggie Gyllenhaal constrói uma Rachel Dawes à altura de Bruce Wayne - agora dá pra entender porque um playboy multimilionário e bonitão como ele se apaixonaria por ela: ela é forte e decidida o suficiente para não sucumbir ao fácil "Oh, que homem perfeito!" (ela pensa mais algo como "Que homem complicado"). A esse elenco de sonhos, adicione um punhado de cenas de ação fantásticas, uma Gotham City com muito mais cara de cidade real do que nunca, um clima desesperançoso... E temos o que é, provavelmente, o melhor filme de super-herói de todos os tempos.

06 >> Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men)
O premiado filme dos irmãos Coen me proporcionou um dos finais de sessão mais interessantes do ano: há o monólogo de Tommy Lee Jones, e no meio do monólogo eu pensei: "O filme vai acabar agora, e vai ser maravilhoso que acabe assim". Ele para de falar, a tela fica preta, as luzes se acendem e eu estou até emocionado com o final. A platéia à minha vonta, no entanto, reagiu diferente: "Como assim?", "Que final é esse!" e "Nada foi explicado" foram algumas das reações que eu colhi. Ainda bem, para mim, que os irmãos Coen não estão atrás de finais redondinhos e explicações fáceis. Onde os Fracos Não Têm Vez é o negativo de Fargo (e, junto com ele, o melhor filme dos Coen): enquanto em Fargo o otimismo e a bondade da personagem de Frances McDormand prevaleciam em meio a um bando de ganaciosos e egoístas, dez anos depois o mundo mudou: os que acreditam na bondade humana - os "fracos" do título não têm vez. Se não morrem, sucumbem. Tudo isso vem novamente disfarçado de policial caipira (mas agora com muito mais suspense que em Fargo), com o personagem de Josh Brolin sendo perseguido por um assustadorzão Javier Bardem após achar uma mala com dinheiro. O mais interessante de Onde os Fracos Não Têm Vez está nas bordas: em como uma personagem secundária como a de Kelly MacDonald acaba sendo a única pessoa com integridade moral; em como o dinheiro, no fim das contas, não tem importância alguma na história; e em como o monólogo final de Tommy Lee Jones é incrivelmente rico em simbolismos. As discussões provocadas por esse filme após a sessão duraram horas, mas a opinião de todos era unânime em relação ao brilhantismo desta obra.

05 >> A Espiã (Zwartboek)
Paul Verhoeven saiu da Holanda e fez nome em Hollywood. Robocop, O Vingador do Futuro, Instinto Selvagem, sucesso atrás de sucesso. Mas então veio Showgirls, um dos filmes mais sem noção (e divertidos) já cometidos. E a vida de Verhoeven nunca mais foi a mesma... Claro que filmes apenas ok como O Homem sem Sombra não adiantaram muito. O que Verhoeven fez? Voltou para a a Holanda e realizou A Espiã, disparado o filme mais... Hollywoodiano de sua carreira. É uma daquelas histórias de guerra com as quais os executivos americanos sonham, uma história capaz de levar multidões aos cinemas e transformar a atriz principal em super-estrela. Pois foi o que Verhoeven fez, mas bem longe dos EUA. A Espiã é a vingança pessoal do diretor, a prova de que o talento dele continua intocável. A história da cantora judia que se disfarça de nazista (com direito a uma pintura platinum blonde) para conseguir arrancar segredos dos alemães é contada de forma magistral, com todos os elementos do cinemão: intrigas mil, amores impossíveis, traições insuspeitas, humilhações. Tudo isso contado com a costumeira franqueza do diretor, que não esconde nada (sim, você vai ver a nossa heroína descolorindo os pelos pubianos). Heroína, aliás, interpretada de forma magnífica e indescritível por Carice van Houten, na atuação mais reveladora do ano - se ela fosse americana, já seria uma estrela. Como não mora, ela é "apenas" dona de uma das atuações mais fortes dos últimos tempos. A Espiã mira na história mas atinge as vísceras. É um filme completo, onde não falta nada.

04 >> Sangue Negro (There Will be Blood)
Paul Thomas Anderson, provavelmente meu diretor americano favorito da atualidade, dá continuidade à sua série de filmes nota 10 com Sangue Negro, que consegue a proeza de ser ainda mais ambicioso que Magnólia. A história do ambicioso explorador de petróleo Daniel Plainview já é uma das sagas mais sensacionais do cinema, com tudo de estranho e brilhante que P.T. Anderson sempre empresta aos seus filmes. São três horas que passam voando, três horas que contam décadas de uma vida e ao mesmo tempo contam muito sobre um país. Daniel Day-Lewis não faz esforço algum em ser simpático ou em fazer com que o espectador sinta empatia - e por isso mesmo seu Plainview é tão fascinante. Ele é o completo oposto das garotas de Vicky Cristina Barcelona: ele sabe exatamente o que quer. E também o que não quer. O que ele quer? petróleo? O que ele não quer? Entre outras coisas, amizade ou a companhia de outras pessoas (basta o uso funcional de seu filho adotivo, o pobre H.W. Plainview, que responde pela parte emocional do filme). Ah, e também a aproximação do oleoso Eli Sunday, um pastor que responde pelo que de pior e mais fanático a igreja tem a oferecer. Se já é difícil fazer um filme de três horas, imagine um com um personagem principal tão difícil. Mas nada parece ser um desafio grande o suficiente para desanimar PTA, que possui a mesma determinação de Plainview: em um giro de 180 graus após a redenção de Embriagado de Amor, Sangue Negro é "simplesmente" a história de um homem solitário porque escolheu ser assim. E no caso dele, não há lição à la "A felicidade só é verdadeira se compartilhada" pra aprender. Daniel Plainview não aprende nenhuma lição, porque desde o início ele já sabe tudo que precisa.

03 >> Desejo e Reparação (Atonement)
Transformar um bom livro em um bom filme é difícil; transformar uma obra-prima literária em uma maravilha cinematográfica é tarefa hercúlea. Pois deixemos o trabalho para o diretor Joe Wright e o roteirista Christopher Hampton, que pegaram o brilhante romance Reparação, de Ian McEwan, e conseguiram fazer a melhor adaptação possível para as telas. Ou seja, não é melhor que o livro. Mas nunca poderia ser. Mas ainda assim é fenomenal, uma verdadeira obra de arte, um filme de tirar o fôlego logo no primeiro ato, com a pequena Briony arruinando a vida do casal Robbie e Cecilia por causa de uma mentira que assume proporções trágicas. Livro e filme são sobre expiação, culpa e arrependimento; mas são também sobre o poder mágico da escrita, sobre a capacidade que a arte tem de, às vezes, proporcionar uma saída quando simplesmente não há saídas. E as soluções encontradas por Desejo e Reparação para honrar esses temas são de emocionar - como a trilha sonora que se aproveita de uma máquina de escrever para criar percussão. O já citado primeiro ato (talvez a melhor coisa do cinema em 2008) é tão repleto de qualidades que fica difícil citar apenas algumas: a atuação certeira de Saoirse Ronan, que consegue se destacar em meio a um elenco irrepreensível. A química e a bravura de Keira Knightley e James McAvoy. A fotografia estupenda, que transforma várias cenas em momentos clássicos. Mas este não seria o filme tão bom que é se a qualidade caísse após o primeiro ato - e não cai. Desejo e Reparação segue destruidor até a conclusão devastadora, que mostra finalmente o poder da arte. É apenas no fim que o filme difere um pouco do livro, e ainda assim não é ruim - é mais cinema e menos literatura. Nem consigo dizer o que deve ser feito primeiro, a leitura do livro ou assistir ao filme, já que sou completamente apaixonado por ambos.

02 >> Deixa Ela Entrar (Låt Den Rätte Komma In)
Em um ano repleto de filmes de terror excelentes, o melhor de todos veio de um país sem tradição alguma no gênero: a gélida Suécia. Na verdade, Deixa Ela Entrar não é apenas um filme de "terror" - nem provoca tanto medo assim -, mas os elementos mais fortes da obra pertencem ao gênero, então é terror e acabou. Mas é também um drama psicológico foda, contando a história do pequeno e frágil Oskar, que vive apanhando na escola e sonha com vingança. Oskar conhece a misteriosa Eli, uma garota que aparentemente não sente frio e só sai de casa à noite. Oskar e Eli são solitários por natureza - cada um com seus motivos -, e acabam formando uma amizade improvável, mas ao mesmo tempo óbvia. O clima frio da Suécia é muito bem explorado pelo diretor Tomas Alfredson, que filma longas cenas silenciosas em um playground cercado de neve, atento a detalhes marcantes como o nariz do pequeno Oskar, que não para de escorrer por causa do frio. Deixa Ela Entrar é um punhado de cenas marcantes atrás da outra, principalmente quando a violência explode. E não apenas as cenas que envolvem vampirismo: o momento em que Oskar finalmente revida a violência de um dos "valentões" da escola é inesquecível, o sorriso estampado no rosto dele equivalendo ao momento em que um herói finalmente mata um super-vilão. Os jovens Kåre Hedebrant e Lina Leandersson estão estupendamente bem, e são o coração de uma obra que já nasceu clássica (assim como o clímax na piscina, uma explosão de fúria quase silenciosa). Eu tive a sorte de ver esse filme na Mostra de São Paulo; vamos todos rezar para que entre em circuito logo. Quero ver de novo pelo menos mais umas quatro vezes.

01 >> 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamâni si 2 Zile)
Pra que serve o cinema? Se me fizessem essa pergunta, uma das primeiras respostas que eu daria seria aquele clichê: "Pra divertir. Pra fazer com que, por duas horas, a gente possa esquecer nossa vida e embarcar em mundos fantasiosos, divertidos, aventurescos, de alguma forma mais bacanas que o nosso". Em uma palavra: como forma de escapismo. Mas às vezes surge um filme ficcional que foge completamente dessa definição - um filme que parece um pedaço de vida arrancado do mundo e jogado na tela, sem artifício algum. Mais ou menos como um documentário, mas talvez mais chocante ainda. Foi assim que me senti vendo 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, a primeira obra romena com que tenho contato. Não é entretenimento, não é escapismo: é a vida, ali, na minha frente. A ausência de trilha sonora, a câmera que fica parada por longos minutos na mesma posição, esses e outros artifícios podem fazer com que as palavras "Dogma 95" venham à mente. Mas não se trata de um manifesto. Pra mim, o diretor Cristian Mungiu simplesmente sabia a brilhante história que tinha nas mãos, e não quis que nada atrapalhasse o andar da carruagem. O que você precisa ver está na tela - e sim, temos pelo menos uma imagem que pode chocar muita gente. Mas precisa ser visto. Porque, apesar de ser uma obra de ficção, não é nada difícil que a história de Otilia e Gabita tenha acontecido na Romênia comunista dos anos 80, ou em qualquer outro país regido por mãos de ferro. A atriz Anamaria Marinca, que dá vida à determinada Otilia, é responsável pela maior atuação do ano: não dá pra pensar em "técnica" quando ela está na tela, e ao mesmo tempo, na cena em que Otilia percebe um erro bobo que cometeu - "Por que não uma mulher?" -, as mudanças no seu rosto são tantas que meu queixo caiu com a competência de Marinca. O melhor filme não-estrangeiro da década? É bem possível. E eu fico ansioso pelas futuras maravilhas que a Romênia pode proporcionar ao cinema.